Blog

Militar Pode Perder a Patente em Caso de Crime Comum?

A perda da patente é uma das punições mais severas para um militar. Mas será que um crime comum, como roubo ou homicídio, pode levar a essa consequência?

aeraeraere
Publicado em: | Atualizado em:

Militar pode perder a patente por crime comum? Entenda os limites legais

A condição de militar traz consigo uma série de deveres e responsabilidades que vão além das obrigações do cidadão comum. Integrantes das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos estados estão sujeitos a um regime jurídico próprio, que inclui normas disciplinares e penais específicas. Isso levanta uma dúvida frequente: um militar pode perder sua patente ou posto por ter cometido um crime comum, que não está diretamente ligado à sua função militar?

A resposta para essa questão não é simples e envolve nuances do direito militar e do direito penal comum, além de princípios constitucionais. A perda da patente ou posto é a sanção mais grave que um oficial ou praça pode sofrer, resultando na exclusão das Forças Armadas ou da corporação estadual. Ela impacta não apenas a carreira, mas também a vida civil e previdenciária do indivíduo, tornando-o um ex-militar, sem os privilégios e a estabilidade que a carreira oferece.

Este artigo vai explorar em profundidade os limites legais para a perda de patente em caso de crime comum. Você entenderá a diferença fundamental entre crime comum e crime militar, quais tipos de crimes comuns podem gerar essa repercussão disciplinar, o que a Constituição Federal diz de forma expressa sobre o tema e, crucialmente, como os diferentes tipos de julgamento (Justiça Militar ou Justiça Comum) influenciam diretamente a decisão de uma possível perda de patente. Nosso objetivo é oferecer clareza e segurança jurídica sobre um tema tão delicado.

O que é perda de posto e patente e quando ela se aplica

A perda de posto e patente é, no universo militar, a mais severa das sanções aplicáveis a um oficial. Para as praças (graduados, soldados, cabos, sargentos, subtenentes), embora a terminologia seja diferente — geralmente “exclusão” ou “reforma disciplinar” —, o efeito prático é o mesmo: o desligamento compulsório da corporação militar. Essa medida não é apenas uma punição disciplinar; ela retira o status militar do indivíduo, eliminando sua carreira, seus proventos e todos os direitos inerentes à condição de militar.

Essa penalidade é reservada para situações de extrema gravidade, onde a conduta do militar é considerada flagrantemente incompatível com o decoro da classe, a ética militar e os valores de honra e lealdade que são pilares de qualquer instituição militar. Não se trata de uma simples sanção administrativa por uma falta leve; é o reconhecimento de que o militar não possui mais as qualidades morais e profissionais para continuar integrando as Forças Armadas ou a Polícia/Bombeiro Militar. A decisão de perda de posto e patente não é discricionária; ela deve ser fundamentada em um processo legal rigoroso que comprove a indignidade ou incompatibilidade da conduta do militar com o oficialato, após trânsito em julgado de condenação criminal ou decisão em processo administrativo específico.

Crime comum versus crime militar: qual a diferença?

A distinção entre crime comum e crime militar é a pedra angular para compreender as consequências disciplinares para um militar. No ordenamento jurídico brasileiro, o Código Penal Militar (CPM) e o Código Penal (CP) estabelecem as tipificações penais, mas o critério de definição de um crime como militar vai além da simples localização da lei.

  • Crime militar: São aqueles expressamente definidos no Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/69). No entanto, o conceito de crime militar é ampliado pelo Art. 9º do próprio CPM, que estabelece critérios como a natureza do agente (se é militar ou civil em certas situações), o local da conduta (em área militar, em serviço, etc.), a finalidade (contra a ordem militar, o dever militar) ou a vítima (militar em serviço, administração militar). Exemplos clássicos incluem deserção (abandono do serviço), motim (reunião ilícita para desobedecer ordens), insubordinação (desrespeito a ordem superior), violência contra superior e crimes contra o patrimônio da administração militar. A Justiça Militar é a competente para julgar esses delitos.
  • Crime comum: São todos os demais crimes previstos no Código Penal ou em legislações extravagantes (como Lei de Drogas, Estatuto do Desarmamento, Lei Maria da Penha, entre outras), que não possuem relação direta com a vida militar ou que não são cometidos em contextos especificamente militares conforme o Art. 9º do CPM. Por exemplo, um militar que comete um furto em um supermercado durante sua folga, sem usar sua condição de militar, está cometendo um crime comum. A competência para o julgamento é da Justiça comum (Estadual ou Federal, a depender do caso).

Apesar dessa distinção de competência e tipificação, é fundamental entender que um crime comum pode sim ter repercussão na esfera militar, especialmente se a conduta do militar, mesmo fora do serviço, ferir os princípios de honra, dignidade, moralidade e decoro exigidos pela carreira militar. É a natureza da ofensa aos valores militares que pode desencadear o processo de perda de patente, e não apenas a classificação do crime como militar ou comum.

Exemplo de crimes comuns com repercussão disciplinar

A gravidade e a natureza do crime comum são fatores determinantes para que ele possa levar à perda da patente. Não é qualquer condenação que resultará nessa medida extrema, mas sim aquelas que demonstram uma patente incompatibilidade do militar com os valores intrínsecos à sua profissão. Exemplos claros de crimes comuns que, por sua gravidade e repulsa social, costumam ter repercussão disciplinar grave incluem:

  • Crimes contra a vida: Homicídio, tentativa de homicídio, ou lesões corporais graves que revelem agressividade excessiva ou desrespeito à vida humana, mesmo que cometidos em ambiente civil e fora de serviço. A sociedade e a instituição militar esperam que seus membros sejam defensores da vida, e condutas contrárias a isso são severamente punidas.
  • Crimes contra o patrimônio: Roubo, furto qualificado, estelionato, extorsão, especialmente se envolverem grande valor, violência, fraude ou quebra de confiança. A integridade moral e a probidade são esperadas de um militar.
  • Crimes relacionados a drogas: Tráfico de entorpecentes, mesmo que em pequena escala e fora de serviço. O envolvimento com drogas é visto como uma ameaça à disciplina, à saúde dos militares e à imagem da corporação.
  • Crimes contra a dignidade sexual: Estupro, assédio sexual, importunação sexual. Condutas que violam a integridade e a dignidade sexual de outrem são consideradas gravíssimas e absolutamente incompatíveis com o militarismo.
  • Participação em atividades criminosas organizadas: A associação a grupos criminosos é uma quebra fundamental de dever e lealdade à nação e à instituição militar.

Nestes cenários, a condenação transitada em julgado na Justiça comum serve como base para a instauração de um processo específico na esfera militar. Para oficiais, isso acontece via Conselho de Justificação; para praças, por meio do Conselho de Disciplina. Esses conselhos avaliarão se a conduta criminosa do militar o tornou indigno para o oficialato ou incompatível com o serviço militar, culminando, se for o caso, na decisão de perda da patente ou exclusão.

O que diz a Constituição sobre militares condenados

A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 142, § 3º, incisos VI e VII, é a base legal que estabelece os parâmetros para a perda de posto e patente de oficiais, bem como para a exclusão das praças. A Carta Magna consagra o princípio do devido processo legal e a necessidade de uma decisão judicial específica para a aplicação dessa sanção tão grave.

  • Para os oficiais das Forças Armadas: A Constituição determina que “o oficial só perderá o posto e a patente por decisão do Superior Tribunal Militar (STM) ou, em tempo de paz, de Tribunal competente, em caso de condenação por crime que o torne indigno do oficialato ou com ele incompatível”. Isso significa que, mesmo que um oficial seja condenado por um crime comum na Justiça Federal ou Estadual, essa condenação, por si só, não resulta na perda automática de seu posto e patente. É indispensável que a União, por meio de ação judicial específica (Ação Declaratória de Indignidade ou Incompatibilidade), submeta o caso ao STM, que analisará se a gravidade do crime e suas circunstâncias tornam o oficial indigno ou incompatível com a carreira. Somente após essa nova decisão do STM, o qual exerce um controle judicial sobre a moralidade e a compatibilidade da conduta com a carreira, é que a perda de patente pode ser concretizada.
  • Para os oficiais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares: O mecanismo é análogo, mas a competência para decidir a perda do posto e da patente cabe ao Tribunal de Justiça Militar estadual (quando houver, como em alguns estados) ou, na ausência deste, ao Tribunal de Justiça comum do respectivo estado. O processo também deve ser específico e assegurar o devido processo legal, garantindo que a decisão de perda de patente seja tomada por um tribunal, e não apenas por uma autoridade administrativa.

Essa exigência constitucional é uma salvaguarda importante. Ela assegura que a perda da patente, uma medida que priva o militar de seu status e de muitos de seus direitos, não seja uma consequência meramente automática de uma condenação criminal, mas sim o resultado de uma profunda análise sobre a adequação do indivíduo em continuar ostentando a honra e as responsabilidades de um oficial.

Julgamento pelo STM ou Tribunal comum: o que muda?

A distinção da competência judicial para julgar o crime e para decretar a perda da patente é um ponto que frequentemente gera confusão. Compreender qual tribunal julga o crime e qual decide sobre a patente é fundamental.

  • Julgamento do Crime Comum: Quando um militar comete um crime comum (não previsto no Código Penal Militar, ou que não se enquadra nos requisitos do Art. 9º do CPM para ser considerado militar), ele será julgado pela Justiça Comum. Isso significa que, se for um crime federal (como tráfico internacional de drogas ou crimes contra a União), será julgado pela Justiça Federal. Se for um crime estadual (como furto, roubo, homicídio em contexto civil), será julgado pela Justiça Estadual. É importante ressaltar que os militares das Forças Armadas não são julgados pelo Superior Tribunal Militar (STM) para crimes comuns; o STM julga apenas crimes militares.
  • Processo de Perda de Posto e Patente: Após a condenação transitada em julgado (sem possibilidade de recurso) por um crime comum na Justiça Comum, inicia-se um processo autônomo e específico na esfera militar para avaliar se essa conduta torna o oficial indigno ou incompatível com o oficialato.
    • Para Oficiais das Forças Armadas: A União, por meio do Ministério Público Militar, deve ajuizar uma Ação Declaratória de Indignidade ou Incompatibilidade perante o Superior Tribunal Militar (STM). Somente o STM tem a competência constitucional para decretar a perda do posto e da patente de um oficial das Forças Armadas. Essa ação não reexamina a culpa pelo crime, mas sim se a condenação por aquele crime (comum) é moralmente incompatível com a permanência do indivíduo no oficialato.
    • Para Oficiais de Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares: O processo é conduzido por um Conselho de Justificação, cujas conclusões são submetidas ao Tribunal de Justiça Militar estadual (se existir, como em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) ou ao Tribunal de Justiça comum do respectivo estado, que proferirá a decisão final sobre a perda do posto e da patente.

Essa diferenciação de competências garante que a perda da patente, uma medida tão severa e definitiva na vida de um militar, não seja uma consequência automática de qualquer condenação criminal. Pelo contrário, ela resulta de uma análise aprofundada e específica da conduta do militar em relação aos princípios, valores e deveres inerentes à sua instituição.

Consequências da Perda de Posto e Patente

A perda de posto e patente acarreta consequências drásticas para o militar, que vão além do simples desligamento da corporação. Ele perde o direito de usar qualquer uniforme, distintivo ou insígnia militar, e seu nome é excluído do Almanaque de Oficiais ou do Quadro de Praças. Além disso, a perda da patente pode impactar diretamente seus direitos previdenciários e assistenciais.

  • Impacto na aposentadoria: Militares reformados ou da reserva que perdem a patente podem ter seus proventos suspensos ou reduzidos, dependendo da legislação específica e da natureza da decisão judicial. O objetivo da sanção é justamente desvincular o indivíduo da carreira, inclusive em seus aspectos financeiros.
  • Restrições na vida civil: A condenação por crimes graves, que levam à perda da patente, também pode gerar inelegibilidade e dificuldades para o militar em processos seletivos públicos ou privados, além de impactar sua imagem social.
  • Irreversibilidade: Uma vez decretada a perda do posto e da patente por decisão judicial transitada em julgado, a medida é, em regra, irreversível. Por isso, a defesa do militar em todas as fases do processo, tanto na esfera criminal comum quanto no processo de indignidade/incompatibilidade, é de suma importância.

A Importância da Defesa Especializada

Diante da complexidade do tema e das graves consequências que a perda de patente pode acarretar, a atuação de um advogado especialista em direito militar é essencial. Esse profissional possui o conhecimento técnico e a experiência para atuar em diversas frentes:

  • Defesa na esfera criminal comum: O advogado atua na defesa do militar na Justiça comum, buscando a absolvição, a redução da pena ou a descaracterização de elementos que possam levar à indignidade do oficialato.
  • Acompanhamento do Processo Administrativo Disciplinar (PAD) ou Conselho de Justificação/Disciplina: Garante que todos os direitos do militar sejam respeitados, como o contraditório e a ampla defesa, e que a decisão seja justa e proporcional à conduta.
  • Atuação no Superior Tribunal Militar (STM) ou Tribunal de Justiça: Em caso de Ação Declaratória de Indignidade ou Incompatibilidade, o advogado militar defenderá a permanência do militar na corporação, argumentando a compatibilidade de sua conduta com os valores militares ou buscando a descaracterização da indignidade.

A situação de um militar envolvido em um crime comum é complexa e exige conhecimento aprofundado do direito militar e penal. Em caso de dúvidas ou necessidade de defesa, buscar o auxílio de um advogado especialista na área é fundamental para proteger os direitos e a carreira do militar, garantindo que o devido processo legal seja observado em todas as etapas.

Leia também:

Gostou? Avalie nosso Artigo!
DR JORGE GUIMARAES NOVO

Sócio e Advogado – OAB/PE 41.203

Advogado criminalista, militar e em processo administrativo disciplinar, especializado em Direito Penal Militar e Disciplinar Militar, com mais de uma década de atuação.

Graduado em Direito pela FDR-UFPE (2015), pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil (ESA-OAB/PE) e em Tribunal do Júri e Execução Penal. Professor de Direito Penal Militar no CFOA (2017) e autor do artigo "Crise na Separação dos Três Poderes", publicado na Revista Acadêmica da FDR (2015).

Atuou em mais de 956 processos, sendo 293 processos administrativos disciplinares, com 95% de absolvições. Especialista em sessões do Tribunal do Júri, com mais de 10 sustentações orais e 100% de aproveitamento.

Atualmente, também é autor de artigos jurídicos no Blog da Reis Advocacia, onde compartilha conteúdos jurídicos atualizados na área de Direito Criminal, Militar e Processo Administrativo Disciplinar, com foco em auxiliar militares e servidores públicos na defesa de seus direitos.

Escreva seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *