Crimes Militares e ANPP: É Possível Fechar um Acordo?
A justiça militar, assim como a justiça comum, busca constantemente mecanismos que promovam a eficiência processual e a resolução de conflitos de forma mais célere e consensual, sempre que possível. Nesse cenário, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), instituído no Código de Processo Penal comum em 2020, gerou intensos debates sobre sua aplicabilidade aos crimes militares. Para militares e advogados, entender se e quando é possível fechar um acordo em crimes militares é fundamental para a defesa e para o planejamento estratégico de um processo.
A natureza peculiar do direito militar, com sua ênfase na hierarquia e disciplina, levanta questões complexas sobre a possibilidade de despenalização e de acordos. No entanto, a busca por soluções que evitem a judicialização completa de casos de menor potencial ofensivo tem ganhado força, e a possibilidade de um ANPP na esfera militar se mostra como um caminho para desafogar o sistema e oferecer uma alternativa à pena privativa de liberdade.
Neste artigo, vamos explorar o que é o Acordo de Não Persecução Penal e sua aplicação original. Em seguida, discutiremos os debates sobre a sua aplicabilidade em crimes militares, quais tipos de crimes militares podem ser resolvidos por meio desse acordo e daremos um exemplo prático. Por fim, abordaremos as situações em que o Ministério Público Militar pode recusar o acordo, mesmo quando ele seria teoricamente possível.
O que é o Acordo de Não Persecução Penal e onde se aplica
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é um instrumento de justiça consensual, previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal (CPP), introduzido pela Lei nº 13.964/2019, conhecida como “Pacote Anticrime”. Ele permite que o Ministério Público (MP), antes de iniciar a ação penal, proponha um acordo com o investigado, desde que preenchidos certos requisitos.
Os requisitos gerais para o ANPP no processo penal comum são:
- Não ser caso de arquivamento: A conduta deve, em tese, configurar um crime.
- Confissão formal e circunstanciada: O investigado deve confessar a prática da infração penal.
- Pena mínima inferior a 4 anos: O crime não pode ter pena mínima superior a 4 anos.
- Não ser crime cometido com violência ou grave ameaça: Crimes com essas características geralmente excluem a possibilidade de ANPP.
- Não ser reincidente ou ter maus antecedentes: O investigado não pode ter condenação transitada em julgado por outro crime ou ter sido beneficiado por ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo nos 5 anos anteriores.
- Ser necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: O acordo deve ser adequado para atingir os objetivos da persecução penal.
Se o acordo for proposto e homologado pelo juiz, o processo criminal é suspenso e, após o cumprimento das condições, a punibilidade do investigado é extinta, evitando-se o registro de antecedentes criminais.
O ANPP pode ser aplicado em crimes militares? Entenda os debates
A aplicabilidade do ANPP em crimes militares tem sido objeto de intenso debate e divergências na doutrina e jurisprudência. A questão central é se o artigo 28-A do CPP, que prevê o ANPP, pode ser aplicado de forma subsidiária ao Código de Processo Penal Militar (CPPM), já que este não possui previsão expressa para tal acordo.
Inicialmente, havia uma forte resistência à aplicação do ANPP na esfera militar, sob o argumento de que a rigidez da hierarquia e disciplina exigiria a persecução penal integral. No entanto, o Superior Tribunal Militar (STM) e a doutrina têm evoluído para entender que, em certos casos, o ANPP pode ser compatível com os princípios militares, desde que não ofenda a hierarquia, a disciplina e o dever militar.
A corrente que defende a aplicabilidade argumenta que o artigo 3º do CPPM prevê a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal comum, desde que não sejam contrárias aos princípios do Direito Processual Penal Militar. Para crimes de menor potencial ofensivo, o ANPP seria um avanço que coaduna com os princípios da eficiência e da razoável duração do processo, sem prejudicar os pilares da caserna. O Ministério Público Militar (MPM), em alguns casos, já vem propondo esses acordos.
Quais crimes militares podem ser resolvidos com ANPP?
Considerando os debates e a evolução da jurisprudência, os crimes militares que têm maior probabilidade de serem resolvidos com um ANPP são aqueles de menor potencial ofensivo e que não envolvam violência, grave ameaça ou grave violação aos deveres militares.
Alguns exemplos de crimes militares previstos no Código Penal Militar (CPM) que poderiam se encaixar nos requisitos do ANPP incluem:
- Desacato a militar (Art. 298 do CPM): Se a conduta não envolver violência.
- Insubordinação (Art. 163 do CPM): Em algumas de suas modalidades, especialmente as que não configuram grave violação disciplinar.
- Dormir em serviço (Art. 203 do CPM): Desde que não haja prejuízo grave à segurança ou ao serviço.
- Embriaguez em serviço (Art. 202 do CPM): Quando a conduta não gerar consequências mais graves.
- Posse ou uso de entorpecente em lugar sujeito à administração militar (Art. 290 do CPM): Para pequenas quantidades e uso pessoal, sem envolvimento com tráfico.
- Lesão corporal leve (Art. 209 do CPM): Quando as lesões forem de natureza leve e sem grave ameaça.
É crucial destacar que a decisão final sobre a aplicação do ANPP sempre dependerá da análise do caso concreto pelo Ministério Público Militar e da homologação judicial. A avaliação levará em conta não apenas a pena e a ausência de violência, mas também o impacto da conduta na hierarquia, disciplina e na imagem da instituição militar.
Exemplo prático: desacato ou insubordinação sem violência
Imagine um cenário em que um praça, em um momento de estresse, profere palavras ofensivas a um superior hierárquico, configurando, em tese, o crime de desacato a militar (Art. 298 do CPM). A pena para esse crime é de detenção, de seis meses a dois anos, o que se enquadra no limite de 4 anos para o ANPP.
Se não houver uso de violência ou grave ameaça, se o militar não tiver antecedentes criminais ou ANPPs anteriores, e se confessar o crime formal e circunstanciadamente, o Ministério Público Militar pode considerar a propositura do acordo. As condições do ANPP poderiam incluir, por exemplo:
- Prestação de serviços à comunidade militar.
- Pagamento de multa ou indenização à instituição (se houver dano).
- Comparecimento a cursos ou programas específicos.
- Obrigação de informar o MPM sobre mudanças de endereço e contato.
Com o cumprimento do acordo, o militar evitaria o processo criminal, uma condenação e os registros negativos que dela decorrem, resguardando sua ficha penal e, possivelmente, sua carreira, ainda que a conduta possa ser objeto de apuração disciplinar interna.
Quando o Ministério Público pode recusar o acordo mesmo sendo possível?
Mesmo que um crime militar preencha os requisitos objetivos para a propositura de um ANPP (pena inferior a 4 anos, ausência de violência/grave ameaça, etc.), o Ministério Público Militar não é obrigado a oferecer o acordo. A decisão de propor o ANPP é discricionária do órgão acusador, baseada em critérios de necessidade e suficiência para a reprovação e prevenção do crime.
O MPM pode recusar o acordo mesmo em casos “possíveis” se considerar que:
- A conduta, embora de pena baixa, teve grande repercussão ou abalou gravemente a hierarquia e a disciplina: Crimes que geram clamor na caserna ou que comprometem a confiança na instituição podem não ser vistos como passíveis de acordo.
- A personalidade do militar investigado ou sua conduta social indicam a necessidade da persecução penal completa: Se o militar tem histórico de problemas disciplinares, mesmo que não sejam condenações, ou se sua postura geral não demonstra um compromisso com os valores militares, o acordo pode ser negado.
- A imposição de condições do ANPP não seria suficiente para a reprovação e prevenção do crime: Se o MPM entende que apenas a condenação em um processo criminal formal seria capaz de atingir os objetivos da justiça.
- O crime militar em questão, pela sua natureza, não se coaduna com a filosofia do ANPP no ambiente castrense: Há crimes que, por sua gravidade intrínseca ao regime militar (ex: descumprimento de missão em campo de batalha, mesmo que a pena base seja baixa), podem ser considerados incompatíveis com a consensualidade.
- Houve recusa do militar em cumprir as condições propostas em um ANPP anterior: Caso o militar tenha tido a oportunidade de um ANPP e não o cumpriu, isso pode ser um motivo para recusa em novo caso.
A recusa do Ministério Público Militar, no entanto, deve ser fundamentada. O investigado, por meio de seu advogado, pode tentar negociar as condições ou, em caso de recusa injustificada, pode recorrer à instância superior do MPM para reavaliar a decisão, conforme previsto no próprio artigo 28-A do CPP.
A possibilidade de aplicar o Acordo de Não Persecução Penal em crimes militares representa um avanço na busca por soluções mais eficazes e humanizadas no sistema de justiça castrense. No entanto, a complexidade da legislação militar exige que o militar e seu advogado estejam bem informados sobre as nuances desse instrumento. Entender os requisitos, as possibilidades e as limitações do ANPP é crucial para uma defesa estratégica e para a proteção da carreira e dos direitos do militar.
Leia também:
- Aposentadoria Militar: Entenda a Reforma e Seus Direitos – Saiba como as mudanças na previdência militar impactam os militares das Forças Armadas e estaduais.
- Reforma Militar: Direito Adquirido e as Novas Regras para Aposentadoria – Entenda se você tem direito adquirido e como as novas regras podem afetar sua aposentadoria.
- Revisão de Aposentadoria Militar: Como Corrigir Erros e Aumentar o Benefício – Descubra quando e como buscar a revisão do seu benefício militar.
- Pensão por Morte Militar: Quem Tem Direito e Como Solicitar – Guia completo sobre a pensão militar para dependentes.
- Doenças que Causam Incapacidade no Militar: Direitos e Benefícios – Saiba quais doenças podem gerar direito a reforma ou aposentadoria por incapacidade.
Referências:
- Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
- Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar)
- Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 (Código de Processo Penal Militar)
- Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime)
- Superior Tribunal Militar (STM) – Site Oficial
Atenciosamente,
Dr. Jorge Guimarães
Sócio e Advogado – OAB/PE 41.203
Advogado criminalista, militar e em processo administrativo disciplinar, especializado em Direito Penal Militar e Disciplinar Militar, com mais de uma década de atuação.
Graduado em Direito pela FDR-UFPE (2015), pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil (ESA-OAB/PE) e em Tribunal do Júri e Execução Penal. Professor de Direito Penal Militar no CFOA (2017) e autor do artigo "Crise na Separação dos Três Poderes", publicado na Revista Acadêmica da FDR (2015).
Atuou em mais de 956 processos, sendo 293 processos administrativos disciplinares, com 95% de absolvições. Especialista em sessões do Tribunal do Júri, com mais de 10 sustentações orais e 100% de aproveitamento.
Atualmente, também é autor de artigos jurídicos no Blog da Reis Advocacia, onde compartilha conteúdos jurídicos atualizados na área de Direito Criminal, Militar e Processo Administrativo Disciplinar, com foco em auxiliar militares e servidores públicos na defesa de seus direitos.





