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Felca e a Quebra de Sigilo Digital: Quando a Justiça Pode Intervir

O caso Felca expôs como a Justiça pode quebrar sigilo digital para proteger vítimas de ameaças e difamação. Entenda os limites e a lei.

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Ameaças virtuais contra Felca: quais crimes e penas se aplicam

Em agosto de 2025, o Tribunal de Justiça de São Paulo deferiu pedido liminar para que o Google entregasse, em até 24 horas, os registros completos de e-mails com ameaças de morte contra o influenciador Felipe Bressanim Pereira, o Felca. A decisão, com multa diária de R$ 100 000 em caso de descumprimento, ilustra a urgência com que o Judiciário tem tratado ataques virtuais que colocam em risco a honra, integridade física e liberdade de expressão de personalidades públicas.

O movimento processual desencadeado por Felca mobilizou equipes jurídicas, peritos em informática e o Ministério Público Estadual. A repercussão em veículos como CNN Brasil e Gazeta do Povo reacendeu o debate sobre as responsabilidades das plataformas digitais e os limites constitucionais da manifestação de pensamento no ambiente online.

A partir desse panorama, este artigo desenvolve em profundidade o conceito de “ameaça virtual” no ordenamento brasileiro, explora as principais tipificações penais, analisa as sanções aplicáveis ao autor das ofensas e traça diretrizes estratégicas para defesa e prevenção. O objetivo é oferecer um guia completo para vítimas, advogados e estudiosos de direito digital.

1. Contexto jurídico e social das ameaças digitais

Com o crescimento exponencial de usuários na internet, surgiram novas modalidades de crime que até então se restringiam ao espaço físico. O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) e o Código de Processo Civil impuseram prazos e diretrizes para quebra de sigilo e coleta de prova eletrônica, mas ainda há desafios práticos para viabilizar investigação célere e eficaz quando o autor utiliza endereços anônimos, VPNs e perfis falsos.

No plano social, influenciadores como Felca se tornam alvos fáceis de ataques coordenados. A combinação entre a exposição massiva e a cultura de ódio digital intensifica a vulnerabilidade dessas pessoas, exigindo respostas jurídicas que conjuguem tecnologia, evidências técnicas e fundamentação legal sólida.

2. O caso Felca: linha do tempo e principais eventos

• 10 de julho de 2025: Felca publica vídeo crítico a grupo organizado.
• 15 de julho de 2025: surgem as primeiras mensagens anônimas contendo insultos.
• 20 de julho de 2025: ameaças explícitas de morte começam a chegar por e-mail.
• 25 de julho de 2025: boletim de ocorrência registrado pela Delegacia de Repressão aos Crimes Cibernéticos.
• 02 de agosto de 2025: pedido judicial de quebra de sigilo contra Google.
• 05 de agosto de 2025: decisão liminar deferida, com entrega de registros em 24 horas e multa diária por descumprimento.

A partir desses marcos, a perícia técnica em informática forense comprovou autoria e reenviou relatórios à Promotoria. A denúncia formal, apresentada em setembro, incluiu os delitos de ameaça (art. 147), stalking virtual (art. 147-A), calúnia (art. 138) e tentativa de extorsão (art. 158).

3. Definição e elementos do crime de ameaça virtual

O artigo 147 do Código Penal descreve ameaça como “prometer mal injusto e grave” contra alguém. No âmbito digital, fala-se em ameaça virtual quando a promessa se realiza via e-mail, aplicativo de mensagens, redes sociais ou fóruns online. O elemento central é a intenção de intimidar, não a efetiva capacidade de consumar o dano.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consagra o princípio de que basta a geração de medo legítimo na vítima. Não se exige prova de capacidade concreta, bastando a percepção razoável de perigo. Isso torna mais fácil processar autores mesmo quando não há indício de arma ou meios imediatos de execução.

4. Panorama jurídico comparado

Na União Europeia, a Diretiva NIS2 e regulamentos de combate ao ódio digital fortalecem a obrigação de provedores de retirar conteúdos ilícitos em prazos rígidos. Nos Estados Unidos, a Communications Decency Act (Seção 230) confere imunidade às plataformas, ao passo que estados como Nova Iorque adotaram leis estaduais específicas para condutas de stalking e cyberstalking. O Brasil caminha para alinhar sua regulação a padrões internacionais de combate a crimes virtuais.

5. Crimes conexos e agravantes

Além da ameaça simples (art. 147), podem ser aplicados:

  • Art. 147-A – Stalking virtual: perseguição reiterada com pena de 6 meses a 2 anos e multa.
  • Art. 138 – Calúnia: imputação falsa de crime, detenção de 6 meses a 2 anos e multa.
  • Art. 139 – Difamação: divulgação de fato desabonador, detenção de 3 meses a 1 ano e multa.
  • Art. 140 – Injúria: ofensa à dignidade, detenção de 3 meses a 1 ano ou multa.
  • Art. 158 – Extorsão mediante ameaça: reclusão de 4 a 10 anos e multa.

O concurso material por envios repetidos ou a continuidade delitiva pode majorar a pena em até metade. Agravantes como motivação torpe, uso de arma ou disparo em massa por bots intensificam a sanção.

5 passos para reagir a uma ameaça virtual

  1. Documentar imediatamente toda comunicação: prints de tela, áudios, vídeos e metadados.
  2. Registrar boletim de ocorrência em delegacia especializada ou na Polícia Civil Digital.
  3. Solicitar medida judicial de quebra de sigilo e requisição de dados de provedores.
  4. Contratar advogado especializado em direito digital para planejar perícia e ações judiciais.
  5. Avaliar transação penal ou acordo de não persecução em crimes de menor potencial ofensivo.

Cumpridos esses passos com rigor, a vítima fortalece a cadeia de custódia das provas e acelera a responsabilização criminal do agressor.

6. Provas digitais e cadeia de custódia

A integridade dos registros eletrônicos é fundamental. Deve-se preservar logs de servidor, arquivos de sistema e metadados originais. Ferramentas como hash MD5 e SHA-256 asseguram que os materiais permanecem inalterados. A ausência de cadeia de custódia pode invalidar perícia e enfraquecer a tese acusatória.

A cooperação entre peritos, Ministério Público e defesa deve ser transparente. Eventual requisição de contraperícia independente é direito do réu e não pode ser obstada pelo Judiciário, sob pena de cerceamento de defesa.

Em casos de deepfake ou manipulação audiovisual, recomenda-se análise aprofundada por laboratório forense especializado, capaz de rastrear alterações e identificar carimbos de data-hora.

7. Responsabilidade civil e danos morais

Paralelamente ao processo criminal, a vítima pode ajuizar ação civil de reparação por danos morais. Tribunais estaduais têm condenado agressores a indenizar valores entre R$ 20 000 e R$ 100 000, dependendo da extensão da divulgação e do impacto psicológico sofrido.

A reparação visa não apenas compensar o ofendido, mas também exercer função pedagógica e dissuasória para a sociedade. A concomitância da esfera penal e cível amplia o leque sancionatório e garante responsabilização integral.

8. Orientações para influenciadores e vítimas

É imprescindível adotar boas práticas de segurança digital: autenticação em duas etapas, senhas únicas e aggiornamento constante de softwares. Criar um canal oficial de comunicação jurídica — como e-mail dedicado e número de WhatsApp exclusivo — facilita a triagem de ameaças e a atuação preventiva.

Instituir termos de uso e política de comentários em plataformas próprias ajuda a filtrar conteúdos nocivos antes que escalem para ofensas criminais.

9. Perspectivas legislativas e tecnológicas

Projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional propõem tipificações específicas para deepfakes e crimes de ódio digital, bem como prazos menores para entrega de dados pelas plataformas. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) também influencia a forma como provedores armazenam registros, exigindo que conciliem privacidade e obrigação de fornecer informação em investigação criminal.

Do ponto de vista tecnológico, ferramentas de inteligência artificial e blockchain começam a ser testadas para garantir rastreabilidade e inviolabilidade das provas, abrindo caminho para modelos mais seguros de litígio digital.

O caso Felca serve como exemplo paradigmático de como as ameaças virtuais podem evoluir de simples ofensas a crimes complexos que combinam stalking, calúnia e extorsão. A reação jurídica imediata, amparada em perícia técnica, demonstra a necessidade de atuação integrada entre advogados, peritos e Poder Judiciário.

Vítimas e defensores devem permanecer atentos às mudanças legislativas e tecnológicas, adotando práticas rígidas de preservação de prova e estratégias preventivas. Somente dessa forma será possível garantir um ambiente digital mais seguro, responsável e em conformidade com os direitos fundamentais.

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Referências

Dr. Tiago Oliveira Reis, doutor em Direito | Reis AdvocaciaOAB/PE 34.925 | OAB/SP 532.058 | OAB/RN 22.557 | www.advocaciareis.adv.br
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dr tiago militar

Dr. Tiago O. Reis, OAB/PE 34.925, OAB/SP 532.058, OAB/RN 22.557

Advogado especializado em ações que envolvem militares há mais de 12 anos, ex-2º Sargento da Polícia Militar e Diretor do Centro de Apoio aos Policiais e Bombeiros Militares de Pernambuco. Atuou em mais de 3039 processos em defesa da categoria, obtendo absolvições em PADs, processos de licenciamento e conselhos de disciplina.

Criou teses relevantes, como o Ação do Soldo Mínimo, Auxílio-transporte, Promoção Decenal da Guarda e Fluxo Constante de Promoção por Antiguidade.
Foi professor de legislação policial e sindicante em diversos processos administrativos. Pós-graduado em Direito Constitucional e Processual, com MBA em Gestão Empresarial, é referência na luta por melhores condições jurídicas e de trabalho aos militares.

Atualmente, também é autor de artigos e e Editor-Chefe no Blog da Reis Advocacia, onde compartilha conteúdos jurídicos atualizados na área de Direito Criminal, Militar e Processo Administrativo Disciplinar, com foco em auxiliar militares e servidores públicos na defesa de seus direitos.

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